quarta-feira, março 28, 2007

Defesa do Sublime

[ FOTO: Cristopher Lee Donovan ]


«Quero este poema no lugar do sublime,
com uma cadeira de névoa ao colo da estátua
e os seios de erva tingidos de púrpura. Puxo
a túnica até à abertura do ventre; e roubo
ao interior de pedra um desenho etéreo,
como se o paraíso estivesse no centro
do umbigo, inscrito na massa obscura
do amor. Moldo-a com as mãos da alma,
esculpindo um corpo. Por vezes, apercebo-me
da sua respiração, de um palpitar de artérias
no interior do mármore. Ouço um desejo
fremente, o choro de êxtase que antecipa
o esgotamento, o sussurro que permanece
no ouvido quando o sol se esvai num
horizonte de cortinas, e os vidros reflectem
os amantes. E dou-lhes o lugar que o sublime
habita, com o seu rosto trabalhado pelo
cinzel do sentimento, raspando a cal do sonho
até deixar entrar a água da vida: a doce
agitação de um abraço, o perfil entrevisto
numa humidade de travesseiros, lábios
subindo a breve colina das pálpebras. Canto,
então, este canto que se prolonga no corredor
do poema, atirando para o lado os obstáculos
da indecisão, abrindo labirintos e becos, até
às portas de argila da memória. Abro-as com
a chave dos murmúrios que me emprestaste,
rodando-a com os dedos do silêncio; e
encontro a tua voz, com o seu fogo de sílabas,
e um ritmo de luz em cada palavra. Trata-se
de um lugar sublime, esse em que a mulher
límpida se senta, limpando a névoa desta
casa com a sua esponja de linguagem, numa
sofreguidão de segredo que o verso ecoa.»



[ Nuno Júdice, in «Geometria Variável» ]



A empatia vence a timidez das palavras..
Sorrimo-nos.
Sorrisos, ternura e gestos...

Sorrisos... abertos que nos cativam.
Ternura... que nos faz avançar para além do campo diáfano do sonho .
Gestos... que nos aproximam.
Cada um abandona o seu exílio...
«Atirando para o lado os obstáculos
da indecisão, abrindo labirintos e becos..»

sexta-feira, março 16, 2007

Lua Adversa


Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua)

No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

[ Cecília Meireles ]



Olho o brilho lunar ..
Embriago-me com a sua luz..
Sei que estou sentada de costas para ti…
Mirando aquele minúsculo ponto para onde todos os sonhos convergem.
Uma corrente de silêncio me prende..
Mergulho nela..

domingo, março 11, 2007

Alquimia



A mulher mostrava-se misteriosa.
O homem desiludido e cansado.
Mas quem com eles contactava notava que a mulher não tinha segredos e que o homem, na realidade, estava contente e satisfeito.
A inclinação que tinham um pelo outro era tão forte que transpiravam sensualidade.

Tinham uma ternura como que voltada para o interior.

Temi-os.

Recordavam-me a minha solitude.
As suas calmas transformavam-se em desejo, o desejo de novo em calma. Um gesto fazia nascer outro gesto. Tocavam-se, acariciavam-se, beijavam-se.

As suas vozes revelavam o sentir que os invadia.

Estática, observava-os e deixava-me possuir pelo sonho.