segunda-feira, agosto 28, 2006

Encruzilhada

Como sonâmbula... deambulo erraticamente pela casa..
Assassino a esperança..

Já há muito fui iniciada no ritual da tristeza, do enfado e da desilusão.
Com os lábios pretos das amoras silvestres e uma mão-cheia de flores efémeras, procuro pendurar-me nas nuvens do sonho.
Mas tenho a melancolia varada no sangue..
E a fantasia esvaiu-se-me do coração.
Como tudo isto me sabe a nada..

Sinto em mim esta incomodidade secreta... que me empurra para uma encruzilhada onde a mudança se impõe.
Não se sabe, às vezes não se sabe, se a mudança de movimento vale alguma coisa. Muda-se, é tudo.
Não se pode ficar, demoradamente, na mesma estação, pois o próprio do Ser Humano é a mudança.
Variar o tempo e recompensar cada movimento com um outro.
Por isso movimento-me ...

Sei que reviverei como a fabulosa ave: a Fénix.
Retomarei os passos perdidos como se tudo renascesse e se refizesse dentro daquilo que sou.
Não pretendo mais caminhos de favor para me cumprir.
Quero manter intacta a generosidade disponível e a reserva de sonhos e amor que me habitam.
Quero pertencer ao mundo que se conhece vivo para viver.
Vida que germina desde a ponta dos dedos até ao oculto pulsar do coração.

Na prática nem sempre o amor é justo.
Dou comigo de contradição em contradição, em face do meu próprio amor e do meu próprio sonho.

Partilharam comigo um poema:
Disseram-me que fora escrito para alguém que se cansou de amar.

Ah.. como gostava de ter sido eu a escrevê-lo!
É belo, intimista, com uma escrita suave e terna.
Escrito por alguém que faz muito bem a fusão entre os sentimentos e as palavras.
Traduz magistralmente o que me vai na alma.
Partilho-o convosco.

« Se eu te procurar numa noite fria..
Vais querer-me porque precisas do meu agasalho.

Mas nos dias tépidos do verão..
Quando as noites mornas aconchegam a tua alma..
Vais adiar-me para o Outono.

E no cair das folhas de que se vão despindo as árvores..
Já eu me terei despido de ti.

E estarei vestida das cores garridas..
Que se usam no Inverno e no verão..
E em todas as estações.»

sexta-feira, agosto 25, 2006

A persistência da gaivota


Regresso à praia.
Gosto do ritmo constante do mar...
Da sua ondulação.. das marés.
Sento-me num banco de areia... desenho um círculo à minha volta...
E as palavras nascem-me da água..

Vejo chegar a gaivota.
Rodopia em torno da solitária...
Pousando as suas patas no círculo.
O bico prende-se nas ondas que beija o areal...
Ávida pelos destroços.
Os olhos abertos... acesos... prontos a queimar...
Fitam-me.

Dentro do círculo, crio um abrigo para me proteger do sol..
Mas a gaivota busca a solitária, tentando furar o abrigo.
Debica..as palhas da entrada... os fios...as coisas soltas...
Anseia por mais despojos..

Sinto o brilho do sol...
Há brilhos que podem durar mais que a própria luz.
Brilhos que nos libertam para atingir o mais fundo sentido da verdade.
Pois só libertando a verdade se desvela..
Brilhos que afastam a obscuridade..

A gaivota esvoaça…
Abre as suas asas para cobrir a intensidade do sol..
E em voo picado...
Rasa o mar.

No meio do círculo, abro as persianas da memória...
Ecoam em mim outros voos da mesma gaivota...persistente.
Porque insiste em penetrar no abrigo, atirando a sua sombra para o círculo?


Tudo vem dar à praia..
Até as penas das gaivotas mortas.

domingo, agosto 20, 2006

Festa,fanfarra e religiosidade

[Imagem da N.S.da Boa Viagem. Ericeira]


Este fim-de-semana a Ericeira está em Festa.
Homenageia a Nossa Senhora da Boa Viagem, padroeira dos pescadores.
Em tempos idos, até se percebia a homenagem.
Hoje em dia a Ericeira não tem pescadores.
Ou se os tem, contam-se pelos dedos e dedicam-se ao aluguer dos barcos para a pesca desportiva em mar alto.
Mas isso são outras estórias.
Nada de críticas!
Estamos em festa!

Ontem a Senhora foi à noite passear, em procissão ,ao mar.
(Também tem direito de sair à noite!)
Barcos engalanados... beatas bem vestidas... velas encapuçadas, não fosse o vento apagá-las, o padre falava para um microfone e a religiosidade repetia.
Nem sabiam o que diziam.
A mensagem até era bonita, mas a lengalenga estava decorada e ninguém prestava atenção ao conteúdo de tais palavras.
A Fanfarra tocava a compasso.
As beatas acenavam a quem não seguia na procissão mas, por curiosidade ou hábito, assistia ao desfile nos passeios.
Foi o meu caso.
É uma festa dentro da Festa.

Hoje acordei com foguetes.
Festa que se preze tem a sua alvorada!
A Fanfarra percorre as ruas e escuto os seus trombones e bombos.
Daqui a umas horas lá temos nova procissão.
Desta vez é a do dia.
Perfilados e levados em ombros pelos "pescadores", lá vêm o S.Sebastião; o S.Vicente; o S.Pedro; o Menino Jesus; o Santo António e a Nossa Senhora da Boa Viagem no seu belo barquinho azul e branco.
Todos muito floridos, porque no que toca a enfeitar os andores, as beatas não deixam os seus créditos em mãos alheias.
À frente vai a Fanfarra seguida dos porta-estandartes.
Depois vêm os anjinhos e as mãezinhas com as garrafinhas de água, não vá alguma criancinha desmaiar devido ao calor.
Depois da fileira de Santos, seguem-se os padres debaixo do «pano» e os diáconos.
Logo de seguida, as Entidades locais, os Bombeiros e a Banda da Vila.
E para terminar, os crentes.
Todos muito compenetrados no seu papel de religiosos.

O povo participa: coloca nas janelas colchas coloridas e brilhantes, miniaturas da Senhora no seu barco, velas acesas e, os mais criativos, redes da faina marítima.
A procissão percorre as ruas da Vila.
É bonita a Festa.

Apetecia-me ser João Villaret e declamar o poema do António Lopes Ribeiro “ Procissão”:

Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão...
(...)

quarta-feira, agosto 16, 2006

Memórias num tempo

Nos meus «arrumos»... para além da minha boina basca, também encontrei muitos papéis meus com «coisas» escritas. Leio-os com ternura. Cada um contém uma história. São primários. A escrita ainda não estava tão «apurada» nem o vocabulário tão enriquecido. De qualquer modo, resolvi colocar um desses «escritos» aqui. Faço-o com carinho e com um sorriso nos lábios. Meu sorriso voou no canto de um pássaro... Em vão o procurei. Esfumou-se como o cigarro que sorvo.. Como o instante que passa.. Sorvo mas não agarro. Perdi as asas do sonho e a Primavera não chega. Não encontro andorinha ou rouxinol com o seu canto cor de mel...com os seus lábios entreabertos cor de amora. Morcegos cobrem o céu... E o meu sangue não chega para alimentá-los. Na seiva que me percorre só líquidos incolores habitam. Se ao menos a madrugada não tardasse e a paz surgisse... Se ao menos o turbilhão em que a minha mente se encontra, ofuscada como a luz da noite, desaparecesse... Para surgir o crepúsculo da serenidade. Se ao menos os pés de cetim da ceifeira surgissem no horizonte... Leves como só eles sabem ser.. A paz interior que almejo... chegasse. Como quem encontra a ternura na lágrima duma criança Ou a felicidade no canto dum rouxinol. Quero que os morcegos sedentos.. Deixem de beber a seiva que me percorre. Pois do evanescente e do efémero já bebi demais. Coimbra 12-3-87 Café «Pigalle» 22h07m

quinta-feira, agosto 10, 2006

Hasta Siempre,Comandante

Sempre que estou de férias aproveito para fazer uns «arrumos» cá em casa. Deparo-me com coisas que imediatamente vão para o lixo; outras, porque são «memória», acaricio-as, sorrio-lhes e fico a tacteá-las...a sentir-lhes a textura... com um sorriso nos lábios e os olhos vagos.. Recuando no tempo… Encontrei a minha boina basca. Ainda com a estrela vermelha pregada. Recordo-me de ser uma jovem caloira universitária e de usá-la no Inverno. Tinha um cabelo comprido aloirado dividido em duas tranças, uma franja e, com jactância, usava a minha boina como homenagem ao Che Guevara. Homem e figura histórica que muito admiro. Não vou falar do Homem que foi. Nem dos seus ideais. Há muita desinformação, quer sobre o seu pensamento, quer sobre os seus princípios, quer até mesmo sobre o seu percurso de vida. No dia em que morreu o Homem, nasceu o Mito. O que me admira são as actuais gerações. O fascínio que o «Mito» Che Guevara exerce sobre elas. É comum vermos jovens com t-shirts com o seu rosto. Desde a foto tirada pelo Korda e que ficou imortalizada, até a outras em forma de B.D., tudo nos é dado mirar. Os jovens são revolucionários e contestatários por natureza. Sonham com mudanças sociais. Sabemos disso. Talvez esse seja um dos atractivos da figura do Che. Porque representa a figura do revolucionário, com todos os seus sonhos, actos e utopias. Mas se Che Guevara foi Mito para muitas gerações, incluindo a minha, para outras, as mais actuais, sinto que é mais Ícone. Nisso é preciso ter cuidado. Os Ícones são simplesmente adorados. Não importa conhecer os ideais, o percurso de vida e de luta, o pensamento. Adora-se, é tudo. Acredito que muitos dos actuais jovens usem t-shirts do Che simplesmente porque lhes dá um certo «ar» e não porque conheçam o Homem por detrás daquele rosto. Custa-me ver o Che banalizado pela sociedade de consumo capitalista, vendido como uma «marca», como uma moda. Usado como produto rentável para a sociedade capitalista Vai contra todo o pensamento «Guevariano», contra todos os Princípios que sempre defendeu incluindo o do combate a essa mesma sociedade.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Chega de Saudade


Ouvi pela primeira vez Bossa Nova aos 16 anos pela voz de João Gilberto.
«Samba de uma nota só».
Fiquei fascinada com aquela voz doce, macia, melancólica.
A partir daí quis ouvir mais e mais....

«Conheci» o poeta Vinícius de Moraes; Tom Jobim; Nara Leão; Toquinho; João Donato; Maysa; Dolores Duran; Astrud Gilberto; Caetano Veloso; Chico Buarque,Bethania; Elis Regina....

Não vou falar dos diversos percursos que alguns deles seguiram.
Nem das incursões da Elis pelo Jazz nem do Tropicalismo do Caetano.

Mas afinal o que era isso da Bossa Nova?
Soube que surgiu no Rio de Janeiro e foi um dos mais importantes movimentos da Música Popular Brasileira.
Que foi criada e popularizada pelo João Gilberto no final da década de 1950 e início da década de 1960.

E quem era esse João Gilberto?
Só sabia que se tratava de um baiano meio louco e genial, fabuloso no violão (instrumento considerado maldito).
Cantava num andamento e tocava num outro.
Na realidade não parecia cantar, dizia as palavras baixinho.
Aquele jeito de tocar acordes e não notas, produzia ritmo e harmonia de uma só vez.
Rapidamente a Bossa Nova adquiriu uma "seita" entre jovens músicos e fãs entusiastas (compostos principalmente de estudantes universitários).

Em 1992 trouxeram-me do Brasil um livro chamado «Chega de Saudade» da autoria do Ruy Castro.
Fruto de muita pesquisa, Ruy Castro escreveu a Historia da Bossa Nova. Desde os primórdios até ao declínio.
Muito bem documentado, quer fotograficamente, quer em depoimentos.
Mostra-nos como os vários elementos surgiram, se conheceram, se entrosaram, se amaram ou se odiaram.
Conta-nos também as querelas entre Tom Jobim e João Gilberto, que começavam a não se suportar.
O nascimento da dupla Carlinhos Lyra e Vinicius.
Episódios caricatos como o das visitas de Carlinhos Lyra ao Vinicius onde era comum encontrá-lo na banheira rodeado de banquinhos, tamboretes, café, uísque, gelo, cigarros, sanduíches, livros, jornais, bloco, caneta e telefone.
Vinicius convidava-o a despir-se, a entrar na banheira e assim nasceram muitas das composições da dupla.
Para quem gosta de Bossa Nova é um livro imperdível.

quarta-feira, agosto 02, 2006

Abstração das Sombras


Era uma vez...
(Todas as histórias começam assim...)
Uma menina que estava a caminho do tudo..
A caminho do nada...
Estava simplesmente parada, à espera, olhando... sem ver.
Sabia... sem saber..
Era... uma nómada…
Uma desconhecida de quem nunca ninguém ouvira falar.

Também do nada...surge uma sombra..
Trazia a segurança no andar..
A menina... a leveza do espanto e da timidez…

As sombras aproximaram-se...
Esvoaçaram até ao centro do nós...
Pisando as sebes, os pássaros, as luas…
Uma, subiu até ao cume da alma...por entre ventos e espumas ébrias de ilusão...
Outra,procurou o abraço em que tudo começa e acaba..
E esse jogo de sombras atravessa-me a memória...
A abstracção do infinito..