terça-feira, junho 27, 2006

O General e o Juiz


Li num matutino que no passado dia 18, a socialista Michelle Bachelet cumpriu 100 dias do mandato como Presidente do Chile.
Pela 1ª vez na história desse país uma mulher está a ocupar o cargo máximo. A chefia do Estado.

Esta notícia fez-me recordar Luís Sepúlveda.

Continuará satisfeito com a sua eleição ou ela não significará mais que a continuidade das políticas desenvolvidas pelo anterior Presidente, Ricardo Lagos?

Algo estará a mudar a sério naquele País tão sofrido?

O Chile sempre me encantou.
Tudo o que a ele diz respeito me comove.

Enternece-me Salvador Allende e o seu idealismo.
Enraivece-me Pinochet e o seu homicida despotismo.
Choro ao ver « Estado de Sitio» do Costa Gravas.
Delicio-me com a escrita de Luís Sepúlveda.

Baseando-se na sua experiência de vida ( tortura às mãos da ditadura; exílio forçado; período de guerrilheiro na Bolívia; vivência no seio de uma comunidade indígena; etc ..) escreve «histórias» comoventes, onde relata a sua visão da realidade.
A sua literatura é uma mescla de oralidade, arte, provocação ...

Propõe-nos, de um modo inteligente, uma partilha de situações e contradições.
Por norma as suas personagens são ingénuas e românticas.
Quase que anti-heróis.

«O Velho que lia Romances de Amor» é exemplo disso.
Um livro belíssimo.
É uma «Ode Poética» à relação do Homem com a Natureza.
Ele parte da relação que teve com o ambientalista brasileiro Chico Mendes, para assim narrar os vários temas.
Nesta obra é abordado o conflito, versus respeito, do Homem pela Natureza.
Tema que o escritor não se cansa de focar ao longo de toda a sua bibliografia.

A «História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar»; o «Diário de um Killer Sentimental»; «Patagónia Express»; «Nome de Toureiro» entre tantos outros, transporta-nos a «viagens» fantásticas pelo seu imaginário tão rico e sensível.

Um dos que mais me marcou foi «O General e o Juiz».
É uma compilação dos seus artigos jornalísticos durante o período em que Pinochet esteve detido em Londres, antes de ser extraditado para Espanha para ser julgado.

Mas Chile também é (e sempre será) Violeta Parra e Neruda.

Uma curiosidade:
A razão que levou Neruda a adoptar esse nome tem a ver com Jan Neruda, poeta checo do sec. XIX.
O seu verdadeiro nome era Neftalí Ricardo.

( Em Praga há uma rua que se chama: Nerudova. Nada tem a ver com o Pablo, mas sim com o Jan. )

sábado, junho 24, 2006

Essência

[Isla Catalina.Rep.Dominicana. Foto tirada pela minha filhota.]

Que posso dizer da viagem que« fizemos» com um oceano a separar-nos?

Trazias contigo a diferença de ser a 1ª vez que«ias» a P.C.
E eu... o coração inundado de emoção.
Inundado de ti.
Queria mostrar-te uma das minhas gentes caribenhas.
As suas praias de aguas esmeralda... onde os teus olhos-mar ainda seriam mais mar.
O alvorecer que se confunde com o anoitecer... como se ambos fossem tão e só um.
Como nós o fomos nessa viagem que fizemos sem teres feito.

Trazias a leveza na alma...
Como se fosses o pássaro que transportava o beijo que se me enovelava nos poros impregnados de sal..
oferecendo-me o conforto duma efémera eternidade.
O meu rosto fixava-te com os seus olhos e o sol despontava dos seus lábios, abertos ao vento, para te receber..
Éramos essência...
Transportávamos um sentimento que atravessava um oceano, um tempo..
Prendendo-nos..
Quando te dizia que andava a aprender «bachata», sorrias..
Tínhamos a cumplicidade de saber quão imperfeitos e desengonçados eram os meus passos na dança..

E à tarde, quando me deitava contigo sobre o areal, e só os pássaros batiam as asas contra as palmeiras que nos escondiam do sol, recebia-te..
Nas palavras… na voz…
Mesmo ali não estando, estavas..
Havia o eco das nossas respirações quando a noite caía sobre a tua ausência.

sexta-feira, junho 23, 2006

«Blues da Morte do Amor»


Já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

A gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

Há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
Mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: - morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

[ Vasco Graça Moura]

quinta-feira, junho 22, 2006

«Lágrimas Negras»


Fui a primeira vez a Cuba em 1994.
Foi uma viagem muito curiosa e interessante.

Nesse ano (94) li no “Expresso” uma reportagem sobre um Festival onde os Trovante tinham marcado presença. Esse Festival tinha decorrido em Havana.
A ilustrar essa reportagem estava uma fotografia do «Malecón» (marginal da cidade de Havana com 7 km ).
Fiquei fascinada, com vontade de me evadir naquele local, de passear por lá.
De conhecer a Ilha dos “barbudos” da Sierra Maestra.

Como não havia nas Agências de Turismo “pacotes” de férias para Cuba, resolvi procurar antigos contactos do meu tempo de universitária rebelde. (sorrio)
Deparou-se-me a seguinte hipótese:
25 dias, hotéis de 4/5 estrelas, pensão completa, percurso de autocarro por toda a Ilha (Cuba é maior que Portugal)e, quando chegasse a Santiago, retornaria a Havana por avião.

Nem hesitei.
“Embarquei” nessa aventura.

Uma das muitas coisas que me chamou a atenção, foi a alegria do povo apesar das adversidades da vida.
A sua música. Os seus ritmos.
Na altura pouco se falava da música cubana.
Esta “nasceu para o mundo” depois do trabalho do Nick Gold e do Ry Cooder, «BuenaVista Social Club», em 1997.

Tomei contacto com o «Lágrimas Negras», pela 1ª vez, em Santiago (1994).

Era sábado. Recordo-me bem.

Íamos numa das ruas da cidade e começamos a ouvir música, ao fundo, e a ver um grande amontoado de pessoas.
Aproximamo-nos.
A música vinha do interior de uma «casa» e era tocada por um grupo de músicos idosos.
Na rua ( e lá dentro ) as pessoas dançavam.
Todos cubanos.
Essa «casa» donde saía a música era, nem mais nem menos, a «Casa de la Trova», fundada pelos Irmãos Matamoros.
(ícones da música cubana dos anos 40. Foi o Miguel Matamoros quem escreveu o Lágrimas Negras )

Vim a saber que era comum, aos fins-de-semana, os «santiageros» se juntarem na Casa de la Trova para conviverem.

Perante esta «maravilha» que me tinha caído aos pés, não pensei duas vezes:
Furei aquele aglomerado de gente e entrei na «Casa».
Encontrei um espacito e lá fiquei, quietinha, a escutá-los. Sozinha.
Olvidei completamente o grupo que me acompanhava.
Ali estive cerca de duas horas. Deliciada com a minha «sobremesa».

Foi nesse dia que escutei o Lágrimas Negras pela 1ª vez. Ao vivo. Tocado por «santiageros» populares.

Há cerca de três anos, na Fnac, estava na secção dos cd´s, e comecei a ouvir um «som» que mexeu comigo.
Com a curiosidade musical que me caracteriza, dirigi-me ao funcionário e indaguei.
Era «um» «Bebo e Cigala». O cd chamava-se: «Blanco Y Negro».
Comprei-o sem o escutar na totalidade (faço isso muita vez).
O pouco que tinha ouvido satisfazia-me.E continha o Lágrimas Negras.

Que trabalho maravilhoso.
Uma pérola.

O Bebo (Valdês) é um lendário pianista cubano, de jazz, com cerca de oitenta anos.
O Cigala ( Diego el Cigala) é um cantor espanhol, de flamenco, com cerca de 38 anos.

Onde está o encanto?
Na selecção musical, nas interpretações majestosas, no timbre da voz do Cigala. Na mistura dos ritmos cubanos e latinos com a voz rouca e rasgada dum cantor de flamenco.

É um trabalho sublime, de um intimismo marcante.
É uma verdadeira catarse de emoções.

quarta-feira, junho 21, 2006

Pablo Neruda (poema nº20)



Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo, a noite está estrelada e tiritam azuis os astros ao longe.
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a amei e às vezes ela também me amou,
em noites como esta eu a tive entre os meus braços,
beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ela me amava, às vezes eu também a amei.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos?

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho, sentir que a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Que importa que o meu amor não pudesse guardá-la?
A noite está estrelada e ela não está comigo – isso é tudo.
Ao longe, alguém canta. Ao longe.

Minha alma não se contenta com tê-la perdido.
Como para aproximá-la, o meu olhar a procura,
meu coração a procura - e ela não está comigo.
A mesma noite que faz branquear as mesmas árvores.

Nós os de então já não somos os mesmos.
Eu já não a amo, é verdade, mas quanto a amei.
Minha voz procurava o vento para tocar os seus ouvidos.
De outro. Será de outro. Como era antes, dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos.

Já não a amo, é verdade. Mas, talvez a ame.
É tão curto o amor e é tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta eu a tive entre os meus braços.
E minha alma não se contenta com tê-la perdido.
Ainda que esta seja a última dor que ela me cause.
E sejam estes os últimos versos que lhe escrevo.

sábado, junho 17, 2006

Diálise



Enredas-me nas tuas duas águas.
Numa, encontro submerso o meu desejo.
Recusas-te a separá-las..
Para que corram distintas.
E segues o teu curso por um rumo que não vejo..

Urge, por isso, fechar as comportas..
Para lá das quais uma estrela se ofusca.

E o tempo corre..
E o caminho de regresso não está aberto.

Fico para trás até te perder de vista.
O vento empurra-me para outro lado..
Oposto aquele onde as águas não se separaram.

Partilhamos o leito da memória...
E o prato do silencio.

As perguntas não têm resposta..
Não as quero...
O que é contraditório há-de continuar contraditório.

Os horizontes não voltarão a sorrir.
Impeço-me de ver os teus olhos a pedirem
Que os olhe..

sexta-feira, junho 16, 2006

Ausência de mim



Acelero o passo quase com furor...
Acelero mais.
Quero ver o mundo a fugir sobre mim...
Quero encontrar-me com a vertigem.

Intento baldadamente saciar a minha incomodidade, desfazer a impotência..

Desconheço-me!

A mulher que conhecia com o canto mais alegre desta vida está, agora, afundada no tédio, resignada e triste..
Desiludida e fechada..

Que me fizeram?
Que me fez a vida?
Já não saberei cantar?
Nem rir com uma gargalhada imensa, escandalosa e sonora?

Digo-me:
-«Ri-te, mulher! Porque o teu mais íntimo e profundo ser nasceu do riso alegre. Rir é sinal da tua força! Não afogues essa chama bruxuleante que em ti ascendia e palpitava.»

Mas o riso prende-se-me na garganta como se o deserto me enchesse o peito..

terça-feira, junho 13, 2006

Prazer e Estética


Estamos naquela hora em que a tarde beija a noite e lhe sorri, dizendo:
«-Vem... anseio-te. Quero serenar no teu breu.. cobrir-me com o teu manto de estrelas.. ofuscar-me no teu brilho lunar.»

Contemplo a chuva e o céu cinzento que me sorriem do exterior.
Crepita um ar cálido.
Estou a mirar a minha cidade e assalta-me um prazer provocado pelo que se me é dado ver.
Sorrio.
Ocorre-me à mente a doutrina do prazer ligada à origem do estético.

Dar-nos-á ou não prazer olhar as coisas belas?
O exercício dos nossos órgãos sensoriais, quando afinam a sensação em agradável, não a elevarão à esfera impalpável de Sentimento?

O Sentir vem sempre acompanhado por uma «representação», por uma percepção.
Quando miro este belo dia chuvoso, a placidez deste recanto da minha cidade, vem-me uma untuosa sensação de prazer...
Por isso entendo que é difícil separar a esfera do prazer, da esfera do estético.

Mas depressa este prazer é substituído pelo prazer de te evocar.

O prazer de afagar a tua pele, de beijar os teus lábios, do timbre da tua voz serena ... rouba-me o prazer da ideia, da objectivação da doutrina..

quarta-feira, junho 07, 2006

Sinto...


Sinto todas as minhas feridas sangrando, como chagas abertas à mercê de animais necrófagos.

Arrasto-me pelo campo de batalha... recolhendo os despojos que deixei pelo caminho.

Que me confrange?
Quem me move?
Porque me castigo?
Quando silenciarei todos os fantasmas que teimosamente persistem em me violentar?

Lambo as feridas na esperança remota de as ver sarar.

Descobri cedo que a felicidade é uma colecção de instantes suspensos sobre o tempo que só depois de amarelecidos pela ausência se revelam. Aprendi que a adversidade esconde sempre um qualquer sintoma de alegria..
Reconheco que o silêncio é um líquido quente que me envolve...
Gritos mudos escapam-se-me da garganta, não os escuto… só os sinto como tenazes comprimindo-me o peito.

Afasto-me de mim para no regresso me buscar mais límpida e me reencontrar.

segunda-feira, junho 05, 2006

Referência


Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?

O que chega primeiro
e só parte por vezes
antes de perceber
que já tinhas voltado

Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?

Aquele que me beija
e me possui
me toma e me deixa
ficando a meu lado

Quantas vezes te digo
quantas vezes...
que és para mim
o meu homem amado?

Que sempre me enlouquece
e só aí percebo
como estava perdida
sem te ter encontrado.

[ Maria Teresa Horta]

sexta-feira, junho 02, 2006

Confidência



Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome.

( Mia Couto )