domingo, outubro 28, 2012

Bruma





Espero a claridade de cada dia que renasce, como se em mim renascesse a primavera.
Escorrego da sombra e espio a luz.
Elevo os olhos, turvos, para o céu e a voz morre-me na garganta.

O ar que, no sonho da noite, imaginei nítido e brilhante, povoado de livres gaivotas, recolhe-se na gruta sombria do silêncio.
E tudo em redor fica tão frio e opaco.

Catadupas de águas mornas, sulfurosas, emergem de crateras invisíveis, alagando as paredes rochosas até as transformar em areia, depositando a esquiva labareda da intuição.



sexta-feira, outubro 19, 2012

Palavras Pinceladas







Quem busca no bornal uma palavra, pincela com sílabas uma tela.

Desenha a roxo o raiar da manhã, onde pássaros inquietos
anunciam a paixão amordaçada que brota da alma do sol, em
tons de laranja cristalinos.

Lá longe, ao fundo, coloca o castanho da montanha onde os olhos
dos amantes se cruzam e, em misteriosos nimbos matinais,
se liquefazem como orvalho que escorre da folha onde o poema se constrói.

De azul, pinta os rios, como braços que desaguam no cais de um
beijo desejado e se enovelam nas brumas da saudade.

E é no branco dos lençóis que o adjectivo se deita e se transforma no vermelho da paixão, resgatando às águas verdes do sonho o carmim dos lábios amados, para transformar em concreto o que parece abstracto.


segunda-feira, outubro 08, 2012

Sagrado Improfano






Nada havia de profano no seu sorriso.
Era o espelho do sentir e do amor à vida.

Nem no meu.

Eram como cânticos que sabíamos entoar e se soltavam da garganta como se quisessem sair do deserto onde estavam cativos.
Cânticos sorridentes, sem música audível, como notas que se anunciam apenas na sensibilidade dos compositores.

Tínhamos a profunda convicção de que o que é vivido plenamente nos humaniza e enriquece.
Por isso, com o sol a brilhar-nos nos olhos, fomos livres e autênticos.

Irmanados pelo impulso que nos unia e engravidava, contemplávamo-nos.

Os meus olhos, cativos nos seus, bebia-os.
Assolava-me uma dupla sede.
Sede que se perpetua no presente como se o ontem fosse o amanhã.



quarta-feira, outubro 03, 2012

Sísifo





« Recomeça…

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças… »

[ Miguel Torga, Sísifo, in Diário XIII ]


E entre o meu e o teu corpo
Cabe toda a distância que nos separa.
Como se entre mim e ti outra distância não houvesse
Senão aquela que se mede pelo abraço em falta.
Afogo esse espaço no oceano da memória
E cubro com a espuma do silêncio
A brisa da tua boca.