quinta-feira, novembro 22, 2012

Solitude




Embrenho-me na cidade.
Sentada num café, olho o mundo que me rodeia enquanto a luz ainda cintila.
Apetecia-me deambular ao acaso, sem tempo ou horas, sem metas ou rumos.
Como se fosse um romano do fim do Império.

Mas o império que me rodeia é o do trivial.
Uma espécie de força cilíndrica que tudo compele.
Não vejo alegria, nem revolta. Vejo a decrepitude de quem arrasta nos pés o peso dos dias.

Sou uma solitária. Sei-o.

Acompanha-me este sentir silencioso, transformado, por vezes, em palavras.
Muitas delas despojadas do seu real significado.
Jogo de metáforas para transmitir o invisível que emudece no meu peito.
Gostava de conseguir comunicar o frenesim que perturba a unidade do meu espirito.

Os pássaros esvoaçam para longe. Sigo-os com o olhar.
Gostava que alguns se aproximassem e me cobrissem com pétalas de flores e beijos.
Que atravessassem a névoa que me habita e a levassem nos seus bicos.

Volto a pensar Álvaro de Campos.
Como sinto a «grande mágoa de todas as coisas serem bocados.»

segunda-feira, novembro 19, 2012

Ventos Benfazejos




Há muros que são sólidos, impenetráveis, por detrás dos quais as pessoas se defendem ou aniquilam. Onde cada um se refugia por temor ou por convicção ou, ainda, por grilhetas invisíveis.
São como prisões da alma. Em regime aberto.
Ou como gaiolas douradas, cujos pássaros temem iniciar os voos..

Mas por vezes há aragens que começam leves e penetram por entre as invisíveis frestas.
Instalam-se ganhando a força de ventos, atiçando fogos que emergem do profundo rio da paixão que corre dentro de cada um de nós.
São ventos arrebatadores que sopram a sua infinita voz sem palavras.
Que nos fazem abandonar a solidão intramuros e nos mostram avenidas largas e soalheiras.

E os passos calcorreiam-nas como raios de sol a furar as trevas, seguindo um trilho de sonhos, ilusões, desejos, aspirações e medos.

Nem todos têm a força anímica para caminhar extramuros.
E mesmo de entre os que a tem, nem todos caminhamos ao mesmo passo.

Esparsa-se-me o olhar pela avenida.
Oiço o eco dos meus titubeantes passos.
Sigo em frente.
Vejo a noite a desfazer-se nos alvores da madrugada em busca da luz do sol nascente.


Ary dos Santos- Estrela da Tarde





« Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
E nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!»

[ Ary dos Santos ]




segunda-feira, novembro 12, 2012

Luis Eduardo Aute - Mojandolo Todo





« Tendida,
con los muslos como alas abiertas,
dispuestas al vuelo.. me incitas,
me invitas a viajar por lácteas vías
y negros agujeros levemente desvelados
por tú mano que juega
por pudores y sudores enjugando
entre pétalos de carne, el estigma
de tu flor más desnuda,
Mojándolo todo...
Volando por universos de licor.

Húmedas llamas
los labios que con tus dedos
delicadamente delatas, dilatas para mí,
mostrándome, obscena la cueva del milagro
por donde mana el líquido rayo de la vida,
incandescente fuente, lechosa lava,
salpicaduras de agua profunda que inunda
Mojándolo todo...
volando por universos de licor.

Mi boca
besando tus labios incendiados
se dispone a beber en tu cáliz de polen y licor
y, entre zumos y zumbidos de olas y alas,
libidinosamente libar el néctar
de la flor de tus mareas...
lamiendo la miel salada que te fluye
y quema mi lengua que vibra,
lasciva, entre savia y saliva
mojándolo todo...
volando por universos de licor

Mis alas
de cera batiendo combatiendo tu fuego
en oleadas de ardientes espumas y plumas
e Ícaro volando tan alto, tan alto...
que a punto de entrar en el jardín del Edén,
fundido su vuelo por tu derramado sol,
cae, como el ángel exterminado,
al mar de los naufragios,
mojándolo todo...
volando por universos de licor. »



sexta-feira, novembro 09, 2012

« Assim é fácil. Díficil é sentir »





«Escrever assim é fácil. Difícil é sentir. »

Disseste-mo com o olhar longínquo, perdido num aroma de palavras, numa tarde de novembro outonal.
A chuva fustiga a vidraça discordando da tua afirmação, enquanto o vento sibila por entre as telhas, em sintonia.

« Não é difícil sentir. Difícil é saber transmitir esse sentir. »
Digo-to.

Nem sempre atentamos ao lado invisível das coisas.
Há pássaros que, apesar de livres, querem levantar voo e não conseguem.
Ficam parados como se não tivessem asas ou estivessem adormecidos.
Sentem que o seu lugar é onde estão. E aí querem estar.
E só quando as penas se soltam sobre a enchente dos rios, a sua essência se revela. E o outono vivido transmuda-se em primavera sonhada.

O sentir, hesitante, brota dos corpos e transmite-se por entre o voo do desejo, liberto.
O sorriso nasce da garganta enquanto as palavras, soltas, se espalham no ninho da paixão onde o sentimento repousa e se dá.

O difícil torna-se fácil.

Os murmúrios voam por entre almofadas de penas e as palavras transportam o amor semeado. Os corpos, em cadência musical, constroem a sinfonia dos amantes e a voz, muda, canta palavras surdas em tons de alma desnuda.

O amor flutua por entre o céu limpo de nuvens, onde os lábios se abrem soltando os pássaros do verão, cativos do frio do inverno.

Cama Do Poema






No lençol do poema,
As palavras em diadema,
Deitam-se na estrofe macia,
Que o corpo, em rima, pedia.

O calor encaixa-se no amor,
Enquanto o desejo se consome no beijo.
E os lábios entreabrem-se
Como pétalas de rosa,
Oferecendo-se em prosa
A esses outros lábios, sábios.

Por entre advérbios gemidos,
Os verbos mudam de sentido,
E os sujeitos, perdidos,
Enlaçam-se, esquecidos.

O perfume das sílabas,
Inebria-nos os medos,
Que se nos enrola nos dedos,
Por entre o véu dos segredos.

E o esplendor dos olhos,
Em que a luz se suspende,
Afastam os escolhos,
Quando o amor se rende.


terça-feira, novembro 06, 2012

Ser e Estar





Sei que «Ser» não é «Estar».

Umas vezes «somos» sem «estar»... outras tantas «estamos» sem «ser».

De noite, quando as águas revoltas do sono me prendem, exilando-me na terra do sonho e dos devaneios, o «ser» e o «estar» fundem-se num só.
A linha que separa o permanente do transitório esvanece-se e suaves odores campestres inebriam-me os sentidos, perfumando-me a alma com aroma de alecrim.

Quando a claridade da madrugada me resgata desse exilio, leva consigo o idílico inconsciente.
E o clarão dos relâmpagos do pensar consciente, ilumina-me, de novo, os corredores da ambiguidade onde tudo parece estático, apesar de saber que é móvel e mudável.

Em quietude de estátua permaneço deitada, mirando o «ser» ainda abraçado ao «estar».

Deslizo o olhar e pouso-o no laço que os envolve, aguardando que se desfaça por entre o sopro do devir.